Por Diely Espíndola
Foto: Getty Images / Fifa.com
Sissi com a camisa da Seleção Brasileira
Certamente você já ouviu falar de Sissi, a primeira jogadora de futebol feminino do Brasil a se tornar conhecida, e eternizar seu nome na modalidade. Talvez falar de Sissi não seja novidade no meio jornalístico esportivo. Mas eu não quero falar somente da jogadora Sissi. Do legado que ela deixou dentro das quatro linhas. Eu quero convidar você para uma jornada sobre o que Sissi nos deixou fora do campo.
Estamos em 2020, e o futebol feminino ainda é um terreno inóspito. Ainda nos deparamos com comentários sobre a aparência das jogadoras, sua qualidade técnica, e outras opiniões que sabemos serem pautadas no machismo. Imagine agora como era este cenário na década de 80. Pois é, e foi nele que Sissi surgiu, e contra todas as intempéries que poderia ter enfrentado, fez seu nome e sua carreira.
Para entendermos o porquê de Sissi ter tido uma importância muito além de somente jogar bola, precisamos entender o contexto em que a jogadora estava inserida. No Brasil, até 1979 a prática do futebol por mulheres era proibida por lei. O texto dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Nos dias de hoje pode parecer absurdo, mas naquela época, a repulsa por mulheres praticando futebol era tão grande, que não havia assombro em uma lei dedicada exclusivamente a proibi-las de estar por dentro do esporte que, para homens, era mais do que natural há 100 anos.
Mas para Sissi, nem as leis, nem a cultura ou o que quer que fosse, a impediram de fazer aquilo que sempre esteve em seu sangue: chutar uma bola. Ou quando não havia bola, muitas vezes tirada de seus pés por seu pai que não aceitava seus gostos, arrancava as cabeças de suas bonecas e fazia delas a sua bola, para não deixar de praticar o futebol que tanto amava.
Pulamos alguns anos, e chegamos à sua vida adulta. Já jogadora profissional, Sissi sentiu na pele que o fato de as leis terem mudado, não significou que o pensamento coletivo também mudou junto com elas. Ao contrário, enfrentou muitos preconceitos, injustiças e absurdos.
E como não poderia deixar de ser em um contexto de repleto de machismo, desses absurdos alguns dos maiores envolveram sua aparência. Em 1999, a seleção de Sissi conquistou o terceiro lugar na Copa do Mundo. Sissi prometeu que, caso o Brasil conseguisse uma boa colocação, rasparia a cabeça, e assim o fez. A jogadora conta que sofreu preconceito de todos os lados, começando pela própria CBF. As tentativas de escondê-la, de vetar entrevistas, não foram suficientes para que Sissi, careca, não estivesse sob todos os holofotes. Não por conta de seu cabelo (ou a falta dele), mas por ter sido uma das principais jogadoras daquela equipe histórica.
Mas a posição de destaque de Sissi, seu talento e sua importância para a seleção, não foram suficientes para que ela fosse blindada de situações desagradáveis. A mais marcante delas, Sissi relata como uma das piores experiências de sua vida. Foi forçada em um ensaio fotográfico da seleção, a usar maquiagem, e outras parafernálias visando performar uma feminilidade que a sociedade, os torcedores e a CBF não aceitavam que Sissi não tinha.
Sissi daquela vez topou, mas nunca mais. Se recusando a usar maquiagem novamente, deixou de receber muitos convites para estar na mídia, simplesmente porque queria o direito de ser ela mesma.
Para os homens, não bastava ser talentosa. Não bastava jogar bola. Para eles, uma jogadora de futebol deveria ser bonita, feminina, e era isso que queriam ver nas jogadoras daquela época, que já enfrentavam tantas dificuldades.
Em 2001, o Campeonato Paulista passou a ter uma regra que escancarava o que os homens pensavam a respeito do futebol feminino: “enaltecer a beleza e sensualidade das jogadoras para atrair o público masculino”. E, para aquelas pessoas, beleza e sensualidade não passavam nem perto do cabelo raspado de Sissi, que o manteve não só como forma de rebeldia, mas também para apoiar um menino que enfrentava o câncer, e era vítima de bullying por sua cabeça raspada.
Na época atuando no São Paulo, Sissi foi proibida de jogar se não se adaptasse às regras, e a resposta da jogadora não poderia ser outra: “dane-se, não preciso disso”.
Confira o vídeo do Brisa Esportiva
E a equipe do São Paulo perdeu uma de suas melhores jogadoras, por machismo, por sexismo, e por um regulamento tão absurdo que nos dias de hoje, nos parece impossível de ter sido verdade.
Sissi rompeu barreiras, muitas dentro de campo, mas que passavam uma mensagem além das quatro linhas: mulheres, não há lei, não há regra e não há homem que possa ficar entre nós e nossos sonhos. Não há quem possa nos fazer abaixar a cabeça, mesmo que o preço seja alto. E, ah, como Sissi pagou esse preço! Uma jogadora como poucas o Brasil já viu, que comprou uma briga que acabou lhe custando muitas oportunidades, e que por isso hoje não recebe o reconhecimento e a fama que o Brasil lhe deve. Uma briga simplesmente pelo direito de jogar futebol, sem fantasias, sem ter sua imagem explorada por homens que queriam jogadoras como símbolos de sexualidade. Uma briga justa, mas que embora Sissi estivesse do lado certo, foi ela quem sofreu a punição.
E assim Sissi viveu boa parte de sua carreira: enfrentando o machismo, mas mais do que isso, mostrando à tantas mulheres Brasil afora que por mais que as barreiras de gênero tentem nos limitar, nos moldar e explorar, as donas do nosso destino somos nós. Não importa quanto nos custe.
0 comentários:
Postar um comentário